terça-feira, 13 de novembro de 2007

Um jardim no asfalto

O que você faria se, de uma hora para outra, precisasse viajar e levar apenas o necessário? A menina Zolfe pensava em levar seu livro preferido, um caderno de desenho, lápis de cor, um vestido vermelho, uma capa de chuva, uma muda de roupa íntima e uma escova de dentes. Mas, na hora em que os homens mascarados invadiram sua casa e forçaram uma saída imediata, a menina levou o essencial: Émil, seu peixe de estimação.
A visão de Zolfe para as implicações pessoais acarretadas por acontecimentos políticos que forçaram sua família e outras pessoas da sua cidade a um êxodo tocado a fuzil é o tema central do ótimo livro Nenhum Peixe Aonde Ir (Marie-Francine Hébert, com ilustrações de Janice Nadeau, traduzido por Maria Luíza Borges, SM). O tema parece difícil, não é mesmo? Mas, de tão belos, texto e ilustração fazem deste livro um jardim florido e perfumado que brota no asfalto.
No meio de tanta angústia, muita prosa poética. Muita. Um estilo próximo ao de Bartolomeu Campos de Queirós. De não em não, a menina segue carregando seu peixe no aquário. A cada passo ele ganha peso. Tudo exige cuidado, pois está cercada de “gente grande brincando de guerra”. Zolfe “carrega o universo nos braços”. E assim, “quando se tem o mundo nos braços deve-se andar a passos lentos”. A leitura pede cuidado. Atenção. Passos lentos para que se possa apreciar a tradução que emociona, conquista. As ilustrações em aquarela ora encantam, ora assustam. Cores vivas dialogam com tons de cinza. Metáforas em forma de aves, gaiolas, máscaras... Árvores secas com raízes cobertas de folhas. Escadas prontas para levar a algum lugar. Um presente para os olhos.
Nenhum peixe aonde ir oferece surpresas. Em suas páginas, a amizade cresce verde e forte. Como uma trepadeira, embeleza o livro ocupando espaços impensáveis. Dentro do livro, outro. Aquele que a menina colocou como o primeiro ítem necessário, mas que deixou para trás: seu livro preferido. O Pote dos Sonhos. Presente de sua melhor amiga. Essencial para exercitar a fantasia em sua difícil jornada para lugar nenhum. Não precisou levar, pois o guarda na memória. O leitor é convidado a conhecer este outro livro na íntegra. Trechos dele se enlaçam com a vida que anda a passos lentos no mundo de Zolfe.
Você pode perguntar qual o destino do peixinho Émil. Eu não vou responder. Só posso dizer que a menina quer ser ceramista quando crescer. Quer construir um pote bem grande onde possa caber inteira. No ar, ficam outras perguntas: Qual universo carregaríamos nos braços? O que levaríamos na memória? Com quem compartilharíamos tudo isso? Vale pensar no que seria necessário e essencial para cada um de nós. Existe uma diferença sutil. E isso não é uma resposta. É um ponto final.

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